top of page

MEU LUTO NA PELE: "QUE É PRA TE DAR CORAGEM, PRA SEGUIR VIAGEM"

Como na canção de Chico Buarque sobre tatuagem, o gato que se foi agora dorme no meu antebraço esquerdo"

20/11/22

Por Patrícia Vidal

"A mágica aconteceu", tatoo sem referências aos últimos dias de Yeshi / Reprodução: arquivo pessoal

Tudo pronto para a viagem: tanque cheio, analgésico tomado (!), barrinha de cereal. Para o caso de eu fraquejar, chocolate com cerejas, para turbinar a endorfina. Coloquei o anel de jaspe vermelha que me deu força quando meu gato Yeshi adoeceu. O aplicativo me levou direitinho ao destino, naquela cidade desconhecida. Fui recebida com um bolo de paçoca feito pela Mirela, assistente da tatuadora. A fatia molhadinha derreteu minha tensão. Tinham adivinhado que sou taurina? Pedi um café para acompanhar e “dar coragem”. Elas riram.


Os últimos meses não foram festivos ou doces. Em pleno luto, queria marcar uma homenagem ao meu Yeshi na pele. Além da rosa de cristal que me deu de presente – uma comunicação intuitiva me contou – estava indecisa sobre como representá-lo. Quando morreu em meus braços, bati uma foto da patinha com intenção de tatuá-la. Cheguei a enviar o retrato para a tatuadora. Depois pensei que aquela tatuagem para sempre me lembraria a pata magrinha e amarela pela icterícia. Triste demais! A impressão carimbada que o crematório carinhosamente enviou (graficamente seria uma tattoo incrível!) também me remeteu ao Yeshi morto. Desisti! Uma dica para os tutores que pensam em eternizar seu vínculo na epiderme: tirem MUITAS fotos de seu animal. Em especial dos aspectos físicos que mais adoram neles.


Perdi a conta de quantas vezes percorri as fotos do Yeshi buscando como tê-lo perto de mim. Chorei em cada uma das vezes, mesmo quando o senso prático prevalecia e eu me percebia ‘forte’. Lembrei das próprias falas que divido com os pacientes enlutados. Das ondas de tristeza que nos afundam do nada, os gatilhos. O movimento indomável do luto, que aprendemos a surfar...


A tatuadora perguntou se a rosa que ele me deu estava aberta ou em botão. Oba! – pensei - ela embarcou na minha história! Que empatia preciosa! Pediu mais fotos para ver melhor o focinho, que estávamos considerando tatuar. E então a mágica aconteceu: eu que resistia à ideia de fazer um retrato realista pois seu olhar era magnífico e, portanto, impossível de reproduzir, vi a artista em momento de conexão divina desenhando seus olhos delineados com perfeição. A rosa encontrou seu lugar harmônico na composição e perdi o fôlego. Lágrimas correram pesadas e quis gravar um vídeo desse momento único. Canalizei a emoção para não desabar!


Entre os desenhos e rascunhos da Tathy, fotos do Yeshi e tantas histórias que dividimos, fui contando para as duas sobre meu trabalho, comunicação interespécies, mensagens dos animais. Nós três, gateiras, nos emocionamos, lembramos dos peludos que partiram, dos que estão conosco. Falamos de coisas que nos nutrem, que importam. As agulhadas doeram. Lembrei de uma paciente que tem uma relação feliz com a dor de tatuar pois lembra dos arranhões da gata falecida. Não funcionou para mim!


Agora o Yeshi está dormindo para sempre no meu antebraço esquerdo, onde ele adorava se aninhar pelas manhãs.

Patrícia Vidal

Psicóloga, especializada em vínculos e luto por perda de animais domésticos, e apaixonada por gatos


bottom of page