PROTETOR ANIMAL: “TEM COISAS QUE A GENTE JÁ NASCE SENDO”
Na coluna de estreia no “ E ai, bicho?”, a criadora do “Cantinho do Chiquinho” descreve quando se deu conta de que resgatar animais era uma missão de vida
11/09/22
Camila Teixeira
Camila Teixeira e Chiquinho, o cachorro que marcou a trajetória da jornalista
O sonho "Cantinho do Chiquinho" está em mim desde do meu primeiro dia de vida. Na verdade, acho até que veio de outra vida. Eu só não tinha o nome. Porque todas as outras camadas desse sonho me eram. Me tornavam. Tem coisas que a gente já nasce sendo. Mas só o tempo nos faz perceber. E foi assim, timidamente, que a minha missão, minha razão de estar aqui, foi brotando. No incômodo em ver um bichinho sentindo fome, frio. Sentindo medo. Na indignação em ver surgindo na rua a tal da carrocinha. Aquelas cenas dos cachorros sendo laçados e jogados para o que seria sua morte, simplesmente por existirem em um mudou desumano, acabava com meu dia. Eu, criança, não entendia a maldade. Pra mim não fazia sentido um ser tão inocente ser tão maltratado.
O humano que eu era, que seria, foi se formando, se fortalecendo assim. Na tristeza tão incômoda em ver cavalos sendo chicoteados, cachorros acorrentados, gatos envenenados. Cresci e moro na periferia. Aqui não é preciso esforço para encontrar quem precise de ajuda.
Foi aqui em Itaquera, zona leste da capital paulista, que a caminho da escola, voltei com muitos bichinhos embaixo do braço. Que chegava em casa, sempre com o promessa pronta na fala: vou encontrar um dono pra ele, prometo. Mas sabíamos que isso era meu jeito de dizer: eu não vou parar.
E foi no saco de pão que eu andava na mochila, nos lanches divididos, na vontade de ter todos, de abrir todas as gaiolas, na defesa das borboletas, aranhas, pombos, de tudo que era vida. Da tristeza de traumas e perdas da infância, em cenas que eu preferia esquecer.
Hoje a carência aqui na periferia é grande, mas lá atrás era o horror em sua forma mais absoluta e cruel.
Lá atrás não existia celular, não existia rede social, denúncias. Eles gritavam e poucos os ouviam.
E uma das camadas do meu sonho era poder ter ao meu lado gente que podia sonhar comigo. 30 de julho de 2013, o dia em que o resgate de um carinha salvaria não “somente” a vida dele como mudaria minha vida, possibilitaria mais do meu sonho, e mudaria o mundo de muitos. Algo muito maior que o sonho poderia alcançar. E olha que sonhos não tem limites.
Chiquinho, meu anjo, nosso anjo, sobreviveu a muitas crueldades. O "Cantinho do Chiquinho" foi criado para falar dele, de toda sua valentia para viver nesse mundo. Depois de muita luta, que contarei em detalhes em uma outra coluna, eu olhei pra tudo que tínhamos alcançado e pensei: vamos voar mais alto.
E foi no nosso primeiro resgate que o Cantinho saiu da bolha. Depois o segundo, o terceiro. E deixou de ser “apenas” do Chiquinho. E se tornou de todos aqueles que esperam pela chance de serem vistos, serem respeitados.
O Chiquinho deu voz à minha indignação. Deu voz ao apelo deles. Fez esse coro de vozes aumentar. Fez muitas e muitas pessoas se juntarem a nós, num abraço coletivo lindo e potente. Hoje o Cantinho tem nove anos. Nesses anos, centenas e centenas de animais foram apresentados a um outro mundo. O da generosidade e bondade genuínas. Centenas e centenas saíram das ruas, da invisibilidade do abandono, para serem amados. E vistos como seres que merecem toda nossa devoção.
O "Cantinho" coleciona histórias inesquecíveis de superação, de recomeço. E seguiremos assim. Infelizmente nosso trabalho só existe porque a maldade também existe. Enquanto o mundo não for o paraíso para eles, permaneceremos lutando por eles.
Camila Teixeira
Camila Teixeira se formou jornalista e nasceu protetora de animais. Atua em São Paulo e está cheia de histórias para contar sobre superação e recomeços.