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“OLHE PARA CIMA” ... VOCÊ VÊ A CAÇA DESPORTIVA NO BRASIL?

Proposta em discussão traz justificativas contrárias ao que está previsto na Constituição para liberar a caça como esporte

23/01/22

Por: Robis Nassaro

Caça do javali não é caça desportiva, mas serve como argumento para projeto em discussão

Começo 2022 aqui no E aí, bicho? com polêmica. Temos que falar sobre o projeto de lei (5.544/2020) que trata da autorização para a chamada “caça desportiva” de animais em território brasileiro. A proposta foi do ex-deputado Federal Nilson Stainsack (PP - SC), e depois alterado na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados pelo deputado Federal Nelson Barbudo (PSL - MT).


Já detalhei na minha coluna anterior (confiram lá!) que parte do que estamos presenciando decorreu do próprio Estatuto do Desarmamento (2003) e da regulamentação dessa lei (2019). Na prática, ampliou-se o acesso ao registro de armas de fogo para “colecionadores”, “atiradores” e “caçadores”. E também pelo momento político nacional voltado para armar parte da população interessada.


Não custa dizer que essa é uma análise técnica, sem qualquer mérito ideológico.


Carteirinha de caçador no país onde a caça desportiva é ilegal? - A existência da previsão legal de um registro para “caçador” no antigo SINARM, mantido no Estatuto do Desarmamento, alavancou muitos milhares de cadastros de “caçadores” no país, de 2019 para cá. O argumento usado é a necessidade de controlar o javali europeu (Sus scrofa) e suas subespécies, em âmbito nacional. Com base nesta autorização pode-se adquirir grande quantidade de armas de fogo e munições (mais de 15 armas de fogo e 1.000 munições anuais) também para essa categoria. (LEIAM ART. 225 DA CONSTITUIÇÃO)


Assim, no interesse de se armar, basta que o interessado se apresente como “colecionador”, “atirador” ou “caçador”. É o suficiente para lhe dar o direito de portar uma arma, totalmente municiada (pronta para uso) durante o deslocamento para suas atividades (exposição, tiro ao alvo e a prática da caça). As milhares de autorizações emitidas pelo IBAMA para a “caça” ao javali nos últimos três anos indicam o sucesso da estratégia que tornou a exceção do registro de arma de fogo em regra.


Na Câmara, o Deputado Nelson Barbudo justificou o PL “da caça” com a mira nos javalis. Segundo ele, “mesmo tendo a Lei federal nº 5.197, de 1967 estimulado o exercício da caça pouco ou nada foi feito nesse sentido até então... permitindo a disseminação do javali... e a tendência é piorar.”


É verdade, em 1967 a Lei federal nº 5.197 foi editada exatamente para regulamentar a caça amadora (desportiva) no país, porém, essa norma deixou a critério de cada estado decidir se havia peculiaridades regionais que a comportasse. O Rio Grande do Sul foi o único até 2008, a autorizá-la. O Estado de São Paulo, por exemplo, negou-se a reconhecer tais peculiaridades, inserindo vedação à caça no art. 204 da Constituição Paulista.


Ou seja, vê-se que apesar do dispositivo legal, a maioria esmagadora dos estados não quis autorizar a prática da caça desportiva, o que por si só indica, desde àquela época, cultura contrária a essa prática, diferentemente do descrito pelo Deputado.


Importante ressaltar que em 2008 a Justiça Federal da 4ª Região, em ação civil pública impetrada pela ONG União pela Vida, proibiu o IBAMA de expedir autorizações de caça no Rio Grande do Sul. A decisão segue mantida pelo STJ e STF.

Portanto, de 1967 (ano de edição da Lei nº 5.197) a 1988 (ano de edição da Constituição Federal), a sociedade manteve sua posição contrária à caça desportiva.



                       Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

                 § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

                  VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (gn).




Percebam que o texto constitucional reviu a mens legis do legislador de 1967. Por consequência e pela hierarquia das leis é incompatível permitir, por uma mesma lei ordinária, a chamada “caça desportiva” no Brasil uma vez que ela causa maus-tratos aos animais, implicando em seu óbito, por puro deleite do caçador.


“Ah! Até o momento não houve declaração formal de inconstitucionalidade!”. Verdade. Mas repare: no Rio Grande do Sul não se pode caçar exatamente porque a Justiça reconheceu que a caça desportiva não encontra guarida no art. 225 da Constituição Federal. Esse deve ser o entendimento esperado na eventual transformação desse PL em lei. Ou seja, uma proposta inconstitucional.


Outro argumento utilizado para justificar a “caça desportiva” é a própria autorização nacional para a “caça ao javali”. São animais submetidos aos atos de caça e, portanto, aos maus-tratos. E dentro da lei! Sim, é verdade, mas essa é uma excepcionalidade prevista na própria Lei federal nº 9.605, de 1998 (Lei de Crimes Ambientais), após reconhecimento, por parte do órgão ambiental competente, de que determinada espécie é nociva.


É por isso que a “caça do javali” é chamada, tecnicamente, de “caça de controle” (e não de “caça desportiva”), pois é realizada para controlar uma espécie, assim como já se discutiu fazer com (lebrões) capivaras e jacarés, em determinados locais específicos. A aprovação dessa modalidade de caça demanda argumentos bastantes sólidos de que não há outra forma, nem outro método de solucionar o problema ecológico gerado por esses animais.


A “caça desportiva” é muito diferente, em termos técnicos, da “caça de controle” porque se realiza por prazer e/ou disputa entre os caçadores. É um deleite, um “passatempo” mental, dizem, que implica necessariamente nos maus-tratos aos animais, da perseguição, inclusive com uso de cães, ao abate (feito com tiros, facas, arco e flecha etc.). É uma atividade realizada para satisfação humana e, por esse motivo, incompatível com o texto constitucional que veda os atos de maus-tratos, sendo inclusive obrigação do poder público impedi-los.

Já, a “caça de controle” é realizada por indicação cientificamente comprovada e é admitida, então, por esse motivo, de maneira excepcional. É uma triste necessidade chancelada pelo órgão ambiental, após o consenso acadêmico de que não há outro caminho a seguir.


Não parece adequado o argumento, pelo menos sob o ponto de vista técnico, de que é pela inexistência da “caça desportiva” que o javali existe em tantos estados no Brasil porque, desde 2011, já há a “caça de controle” dessa espécie, com ampliação significativa de controladores de 2019 para cá. Portanto, não é a partir da permissão da “caça desportiva” que tal espécie será exterminada, pois isso não ocorreu até o momento, passados 10 anos da edição da norma.


Veja-se que bastaria o interessado se habilitar ao “controle do javali” - e convenhamos, a maioria deles, interessados em ser “caçadores desportivos” - já obteria essa licença de controle, não precisando de uma nova modalidade de licença para “caçador desportivo”.


É complexo defender que países importantes como os Estados Unidos, Austrália, Alemanha, França e Argentina possuem o espírito da caça esportiva e, ao mesmo tempo, fomentam a conservação das espécies. Só que a maioria desses países não possui a frágil legislação brasileira, no que diz respeito ao descumprimento da lei de crimes ambientais. Nesses países a quebra da ordem ambiental tem sérias consequências, enquanto aqui no Brasil, não.


Por exemplo, caso esse projeto se transforme em lei e um caçador abata um animal não autorizado (uma onça pintada, por exemplo, como vimos recentemente no Nordeste) ele responderá, nos termos do art. 11 do PL, por um mero crime de menor potencial ofensivo. Quer dizer, nem processado será. Pagará uma multa e/ou cesta básica e estará pronto para praticar outro crime, como vi pessoalmente ao longo de 24 anos trabalhando na Polícia Ambiental paulista. É isso que se pretende ao estimular a prática da caça desportiva?


Sem uma readequação das sanções previstas na Lei de Crimes Ambientais para os crimes contra a fauna, o que é muito necessário, inclusive, é insustentável sugerir que ocorra no Brasil o que ocorre nos mesmos países citados pelo Deputado.


Da mesma forma, não há qualquer relação entre o espírito da caça esportiva e à conservação das espécies. É muito complexo afirmar que cada um dos caçadores, isoladamente, irá se preocupar a agir para manter as espécies para que ele as possa caçar, no futuro. O que o caçador vai pensar? “paguei a licença, adquiri as armas e agora eu quero caçar e pronto!”. Na prática, não há qualquer certeza sobre garantir a conservação de espécies, ainda mais no Brasil, onde ainda há muito a avançar em educação, cidadania e direitos da coletividade.

Outro ponto de extrema preocupação é autorizar a criação de espécies para a caça. Seriam animais selecionados em uma lista apenas porque existem em abundância na natureza. A procriação e liberação nas áreas de caça poderão provocar exatamente o que ocorreu com o javali: a quebra do equilíbrio pelo excesso desses animais de interesse à caça no ambiente.


Lembro que uma das hipóteses mais abordados pelos pesquisadores é a de que a invasão do javali no ambiente natural, decorreu exatamente de criadores que deixaram os animais escapar dos seus recintos na Argentina e Uruguai e, também, no sul do país. Os javalis invadiram o território pelas fronteiras, chegando em quase todos os estados do Brasil.


A ideia desses criadores era exatamente liberar os animais na natureza para permitir o citado “espírito de caça esportiva e fomentador da conservação das espécies” mencionado pelo Deputado Nelson Barbudo. Já vimos esse filme antes! E sabemos o final.


A caça ao javali deu certo, mas os criadores não se responsabilizaram pelos danos à biodiversidade e às atividades rurais brasileiras.

O próprio repórter Rubens Valente na matéria “Aumento da ocorrência de javalis levanta dúvidas sobre plano de combate”, publicada no UOL em 10/10/21, discute se os controladores de javali não estariam deixando de abater fêmeas visando a continuidade da prática, mesmo que isso custe a extinção de outras espécies predadas pelos javalis, danos irreparáveis ao ambiente e ao patrimônio de boa parte dos agricultores atingidos. Esse seria o espírito da conservação das espécies?


O PL também parece ignora o próprio tempo de funcionamento dos órgãos. Atribuir 180 dias para que se publique a relação de espécies permitidas para a caça e a respectiva delimitação de áreas, as espécies que poderão ser criadas e recriadas para a caça (art. 3º) e, ainda, 180 dias para o lançamento de um sistema informatizado para solicitações, análise documental e emissão de licença de caça (art. 6º), é algo impossível de ser cumprido.


Nesse prazo não se consegue nem preparar editais contemplando os planos, programas e projetos descritos no parágrafo único do art. 3º, os quais levam muitos anos e envolvem inúmeros especialistas para cada uma das espécies, muito menos garantir reservas de recursos, necessárias às licitações, seguindo o rito orçamentário descrito em lei.

Esses aspectos que abordei são apenas alguns de tantos que poderiam ser discutidos em relação ao tema e ao PL em andamento na Câmara dos Deputados. Como sempre procuro fazer em meus textos, há 30 anos, não discuto linhas políticas e/ou ideológicas, pois acredito que na democracia, é o pensamento da maioria que deve prevalecer.

Entretanto, apontar sugestões de melhoria e difundir mais conhecimento sobre os temas é algo que todos nós temos que fazer para contribuir com as propostas, ou até mesmo mostrar que elas são inviáveis.


No caso deste PL, o tema é complexo, ainda mais para um país tão diverso. Muitas questões seríssimas não estão contempladas no texto ou foram empurradas para a regulamentação. Isso tende a gerar instabilidade jurídica e mais decisões em âmbito do poder executivo, as quais são facilmente decididas sem a representação do povo. Por exemplo, como poderia se caçar em áreas públicas, conforme o art. 8º do PL, como em unidades de conservação garantindo-se que os caçadores não “errarão” o animal, abatendo outro ameaçado?


Encerro, para reflexão, com a mensagem do filme “Olhe para Cima”, produzido pela Netflix, com a participação do ambientalista Leonardo DiCaprio. Nesse filme, a Presidente dos Estados Unidos, seguindo a recomendação dos apoiadores da sua campanha e altamente interessados que ela seja reeleita, deixa de adotar providências possíveis para evitar que um enorme cometa destrua o planeta.

É por isso que o governo americano, no filme, criou a campanha, “Não Olhe para Cima – Olhe para Baixo” para que as pessoas desacreditassem a ciência e não olhassem para cima para ver o asteroide se aproximar (não vou contar o resto do filme, assistam!).

Olhemos todos para cima para verificar se, de fato, a caça desportiva vai propiciar o esperado equilíbrio ecológico das espécies, reduzir a caça ilegal e o tráfico de animais silvestres. Ou ao contrário! Com um desfecho triste de crueldade, extinção das espécies silvestres e o desequilíbrio do meio ambiente que definimos proteger na Constituição!

Robis Nassaro

Doutor em Ciências Policiais e pesquisador da Teoria do Link.

Escreve, com muito orgulho, uma coluna mensal para o “E aí, bicho?”

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